Em reunião com a Prefeitura de Bom Jesus da Lapa, programa garante aumento de carros-pipas e reativação do posto de Saúde da Família para atendimento das necessidades do povo originário
Bom Jesus da Lapa/BA – Os remanescentes quilombolas da Lagoa das Piranhas receberam, nesta quarta-feira (21), agentes da Fiscalização Preventiva Integrada (FPI) do Rio São Francisco para reivindicar o fim imediato do lançamento de efluentes no manancial que dá nome ao povo originário. Eles também cobram ações para recuperar o corpo hídrico, de modo a voltar a utilizá-lo em seu cotidiano doméstico, econômico e de lazer.

Há anos a lagoa recebe água contaminada com agrotóxicos, fertilizantes e carga orgânica, que desce de um canal de drenagem (dreno) vinculado às atividades agrícolas da região. A alteração no curso da água teve origem na implantação do Projeto Formoso da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) em 1989.

Localizada na zona rural do município de Bom Jesus da Lapa, a Lagoa das Piranhas tornou-se um corpo hídrico poluído, com proliferação de plantas macrófitas, que reduz a oxigenação na água. Com o dreno, tanto a flora quanto a fauna da lagoa encontram-se ameaçadas e, não raro, ocorre mortandade de peixes. Para piorar, o tratamento deficiente da água que abastece mais de 600 quilombolas também gera o fenômeno da “água dura”, quando o líquido concentra quantidade significativa de sais de cálcio e magnésio.
Atualmente, a comunidade depende de carros-pipas para ter acesso a água potável. O consumo do líquido que chega pelo encanamento vem da lagoa e é impróprio para seres humanos, trazendo doenças aos consumidores, seja no ato de beber, seja no uso doméstico. Entende-se por uso doméstico atividades de como lavagem de roupas e pratos, higienização pessoal, e limpeza de ambientes internos da casa.
Há relatos de sintomas de cefaleia, diarreia e dores abdominais. Quem entra no manancial reclama de coceiras e irritações na pele que duram dias. Reclama-se também da falta de profissionais da saúde no posto de atendimento da comunidade, sem médico há cerca de oito meses.
Comunidade preocupada
Segundo o presidente da Associação Comunitária dos Quilombolas de Lagoa das Piranhas, Cláudio Pereira, só em 2024, quatro moradores da comunidade morreram em decorrência de câncer. “Algo inédito nessa comunidade. Não temos como saber quanto mais morrerão em devido à contaminação da lagoa”. A liderança demonstra preocupação com futuro dos remanescentes e encontra apoio entre seus pares, que, por meio de mutirões e na atenção no ambiente escolar, promovem a ação direta.

“Depois de documentar e alertar às autoridades, resolvemos ir para ativa para combater a proliferação das plantas macrófitas, que chamamos de bobó ou baronesa. Fomos para água retirar essas plantas da superfície. Já são 11 mutirões fazendo essa retirada, sem nenhum equipamento de proteção individual, com as pessoas sentindo coceiras, saindo urticárias na pele. Esperamos que a FPI nos ajude nessa causa. Contamos com a fiscalização no diálogo junto à Codevasf para resolver o problema do dreno”, disse o vice-presidente da associação, Misael Conceição.

Para a professora Tainara Ribeiro, a grande quantidade de água contaminada impacta no processo educacional de crianças e adolescentes da comunidade: “Ensino há sete anos. A gente percebe que os alunos não têm mais aquele ânimo para aprender. Isso está ocorrendo em virtude desses metais pesados que estão sendo jogados diariamente na nossa água, afetando a saúde das nossas crianças e adolescentes. Eles estão tendo muita dificuldade. Diariamente, mandamos alunos para casa com dor de cabeça, dor de estômago muito forte. Como a gente vai fazer diante dessa situação? Nós não podemos medicar e manter na sala de aula. Os alunos perdem demais, afeta a aprendizagem”.
Além do dano ambiental e da ameaça à saúde pública, a poluição da Lagoa das Piranhas traz prejuízos ao lazer e ao desenvolvimento sustentável da comunidade. Hoje nem as crianças quilombolas, nem turistas entram na água sem saírem se coçando. A orla lagunar também foi tomada por uma vegetação estranha à original, dificultando o acesso ao corpo hídrico. Atividades econômicas como a pesca e a agricultura familiar sofrem com os impactos da poluição.
O que a FPI vai fazer
Em reunião com a Prefeitura de Bom Jesus da Lapa realizada na tarde desta quarta-feira (21), logo após a escuta dos quilombolas, a FPI do Rio São Francisco garantiu o aumento de carros-pipas para atendimento à comunidade. Também ocorrerá a reativação do posto de Saúde da Família. Neste, ficará disponível uma equipe de saúde com médico, enfermeiro e demais profissionais necessários uma vez por semana.
O Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) informou que a tarifa passará a ser zerada em relação às deficiências no fornecimento. Isso porque, além da tarifa social ser direito de comunidades tradicionais, a dureza da água passou a ter uma concentração de sais de cálcio e magnésio de 400 miligramas por litro.

Sobre as demais pautas, o procurador da República Marcos André Carneiro, já confirmou a veracidade de parte dos relatos que chegaram ao Ministério Público Federal (MPF) a respeito da contaminação da Lagoa das Piranhas. “Sabemos que o projeto de irrigação foi feito sem a consulta da comunidade tradicional e que vem impactando até hoje no modo de vida dela. A olho nu, constatamos a presença da vegetação invasora, que é uma marca, pública e notória, de que as condições da lagoa não estão equilibradas. Em fotos antigas de como era a lagoa, a gente observa uma lagoa limpa. É triste ver o que aconteceu”, disse.
“Temos que cobrar providências dos órgãos competentes. É o que o Ministério Público Federal vem fazendo. Confirmando as irregularidades, a gente se reunirá com a Codevasf, o Município de Bom Jesus da Lapa e o Estado da Bahia para apresentar uma solução para essa comunidade. Do jeito que está realmente não pode ficar, porque os quilombolas vêm sofrendo os efeitos disso”, complementou o procurador.
Para a coordenadora-geral da FPI do Rio São Francisco e promotora de Justiça de Bom Jesus da Lapa, Luciana Khoury, apesar dos avanços com os procedimentos já adotados pelo Ministério Público do Estado da Bahia e do MPF, a mudança da realidade dos quilombolas de Lagoa das Piranhas só terá início, de fato, com a retirada do dreno que afeta suas águas. Há inclusive conversas com a Codevasf nesse sentido.
“Há um acordo com a Codevasf para desenvolver um projeto que retire o dreno do território quilombola. Esse projeto já foi apresentado para os Ministérios Públicos, que, agora, verifica se ele é adequado, se não causará outros impactos ambientais e se a obra é executável”, atualizou a coordenadora-geral da FPI.
A promotora de Justiça cobrará das autoridades competentes a retirada das plantas macrófitas do local, que é uma consequência da presença dos fertilizantes e agrotóxicos no corpo e no entorno da lagoa. Segundo ela, só será solucionada essa questão com o fim do dreno, visto que já foi comprovada a inexistência de lançamento de esgoto no manancial.
“Estamos muito confiantes de que resolveremos todos esses problemas porque a Codevasf está muito empenhada na solução acordada. Também acreditamos que o Município de Bom Jesus da Lapa adotará as providências necessárias. Vamos atrás de todos os recursos para que as dificuldades se resolvam. O que a gente não pode deixar é a comunidade sem a garantia de seus direitos”, concluiu a coordenadora da FPI do Rio São Francisco, que foi informada da presença do diretor da Codevasf na audiência pública do próximo dia 30.
Autossuficiência e racismo estrutural
O presidente da Associação Comunitária dos Quilombolas de Lagoa das Piranhas, Cláudio Pereira, conta que o povo originário tem registros de existência desde 1691 e sempre se caracterizou pela autossuficiência: “Vivíamos nesse território isolado justamente em virtude da lagoa. Ela nos fornecia o alimento necessário para a comunidade se manter. Havia o extrativismo, a coleta do mel, as plantas nas capoeiras, a produção artesanal, a pesca e a caça, estas duas com maestria. Se a gente precisasse conservar os alimentos, a gente colocava no mel ou na gordura de peixe”.
Para a liderança quilombola, interferências externas minaram essa autossuficiência, levando a comunidade a depender do poder público para defender a terra de invasores não quilombolas e acessar serviços de educação e saúde. Com o Projeto Formoso, também se passou a depender de abastecimento de água. Na leitura de Cláudio Pereira, a transformação da autonomia do povo originário e a vulnerabilidade às ameaças são resultados do racismo estrutural.
“As autoridades conhecem nossa realidade. Sabem que somos uma comunidade quilombola, que, inclusive vivemos um sítio arqueológico reconhecido pelo Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional]. Não percebemos ações efetivas para minimizar os impactos que trouxeram para cá. É preciso que se faça a retirada do dreno da lagoa e a regularização do território quilombola, para que só assim, a comunidade volte ao patamar de subsistência de antes com a capacidade de viver tranquilamente sem precisar que nossos jovens produtores saiam daqui para buscar serviço em outros lugares, inclusive no próprio Projeto Formoso, porque o peixe não existe mais, a caça não tem mais, as áreas de produção foram todas usurpadas e a comunidade está isolada sem nenhuma política estruturante que melhore sua qualidade de vida. Caracterizamos esse quadro como consequência de um racismo estrutural”, explicou.
Quem esteve presente na escuta da comunidade
Para escutar a comunidade, estiveram presentes na reunião os promotores de Justiça Luciana Khoury e Gabriela Ferreira, o procurador da República Marcos André e integrantes das equipes de Saneamento 1 e de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos da FPI do Rio São Francisco.
A equipe de Saneamento 1 é formada por representantes da Agência Reguladora de Saneamento Básico da Bahia (AGERSA) Conselho Regional de Engenharia e Agronomia da Bahia (Crea-BA), Conselho Regional de Química (CRQ) e Diretoria de Vigilância Sanitária e da Saúde Ambiental da Secretaria de Estadual de Saúde da Bahia (Divisa-SESAB).
Já a equipe de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos conta com técnicos do Fórum Baiano de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos e pela Agroecologia (FBCA), Divisa-SESAB, Universidade Estadual do Sudoeste Baiano (UESB), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e Universidade Federal de Sergipe (UFS).
A FPI do Rio São Francisco
Criada em 2002, a FPI do Rio São Francisco na Bahia é um programa coordenado pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA), pelo Conselho Regional de Engenharia e Agronomia da Bahia (CREA-BA), pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).
Multidisciplinar, a iniciativa tem como objetivos: melhorar a qualidade de vidas das comunidades da bacia e dos seus recursos hídricos; combater o desmatamento, a captação irregular de água, os impactos dos agrotóxicos, a extração irregular de minérios, o comércio ilegal de animais silvestres, a pesca predatória, além de atuar no gerenciamento de resíduos sólidos. Outra frente é a da preservação do patrimônio arquitetônico, cultural e imaterial da bacia.
Inicialmente realizada na Bahia, a FPI do São Francisco foi expandida para os estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Minas Gerais. Em 2024, o programa foi o grande vencedor do Prêmio Innovare 2024 na categoria Ministério Público, a maior honraria concedida ao Sistema de Justiça brasileiro. Em 2020, a FPI do Rio São Francisco já havia sido premiado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) como o maior indutor de políticas públicas.
Composição da 51ª FPI da Bahia
Compõem a 51ª edição da FPI do Rio São Francisco na Bahia a Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (ADAB); Agência Peixe Vivo (APV); Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza, Desenvolvimento Humano e Agroecologia (AGENDHA); Agência Reguladora de Saneamento Básico do Estado da Bahia (AGERSA); Animallia Ong Ambiental; Agência Nacional de Mineração (ANM); Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF); Corpo de Bombeiros Militar (CBM-BA); Companhia de Engenharia Hídrica e de Saneamento da Bahia (CERB); Companhia Independente de Polícia de Proteção Ambiental (CIPPA); Conselho Federal dos Técnicos Industriais; Conselho Regional de Engenharia e Agronomia da Bahia (CREA-BA); Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Bahia (CRMV-BA); Conselho Regional de Química 7ª Região – Bahia (CRQ); Conselho Regional dos Técnicos Industriais da Bahia (CRT-BA); Diretoria de Vigilância Sanitária e Saúde Ambiental (DIVISA-SESAB); Fundação José Silveira (FJS); Fórum Baiano de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos e pela Agroecologia (FBCA); Fundação Nacional de Saúde (FUNASA-MS); Grupo de Defesa e Promoção Socioambiental (GERMEN); Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA); Instituto HORI; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); Marinha do Brasil; Ministério da Saúde (MS); Ministério do Meio Ambiente (MMA); Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA); Ministério Público Federal (MPF); Ministério Público do Trabalho (MPT); Polícia Civil do Estado da Bahia (PC); Polícia Federal (PF); Polícia Militar do Estado da Bahia (PMBA); Secretaria da Agricultura, Pecuária, Irrigação, Pesca e Aquicultura (SEAGRI); Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia (SEFAZ); Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia (SEPROMI); Secretaria da Saúde (SESAB); Superintendência Baiana de Assistência Técnica e Extensão Rural (Bahiater/SDR); Secretaria de Infraestrutura Hídrica e Saneamento da Bahia (SIHS); Sindicato dos Técnicos Industriais de Nível Médio do Estado da Bahia (SINTEC-BA); Secretaria da Segurança Pública (SSP); Superintendência de Desenvolvimento Agrário – Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDA-SDR); Superintendência de Proteção e Defesa Civil (SUDEC); Universidade Estadual da Bahia – Departamento dos Povos Indígenas, Comunidades Tradicionais e Camponesas (UNEB/DCT/OPARÁ); Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).